Coco Chanel - Boy Capel
Logotipo eternizou a sociedade comercial, e a paixão
Era alta madrugada, apesar das insistentes pancadas na porta o mordomo demorou a aparecer. Mademoiselle está dormindo, informou. O visitante insistiu para que ela fosse acordada. Quando Chanel desceu as longas escadarias, descalça, os cabelos curtos desgrenhados, vestia um pijama branco de cetim. Ao receber a notícia de que Boy Capel estava morto, seu rosto se contorceu em agonia, mas não havia lágrimas. “Quando perdi Capel, perdi tudo”, diria Coco Chanel repetidamente ao longo dos seus 52 anos de vida daí em diante.

Gabrielle Chanel nasceu em Maine-et-Loire, porto fluvial às margens do rio Loire, em 1883. Os pais tinham uma barraquinha de botões, fios, linhas, miçangas, produtos de armarinho. Sua mãe, Jeanne, engravidou e seu pai, Albert, desapareceu; a família de Jeanne pressionou, ele voltou, Jeanne engravidou novamente – dessa segunda gravidez nasceria Gabrielle – mas ainda nada de casamento. Quando a família de Jeanne se cotizou para pagá-lo, Albert finalmente casou e assumiu a paternidade das duas filhas, mas continuava indo e voltando. Às vezes a mãe ia atrás dele em outra cidade ribeirinha, onde houvesse um mercado agitado; outra vezes ele mesmo levava a turma toda, em busca de uma oportunidade em outro local, e esta não se desenhava muito melhor que a anterior.
Chanel nunca falou sobre a sua juventude, os poucos relatos são contraditórios. Pessoas que poderiam ter dado depoimentos mais apurados, como suas irmãs, eram terminantemente proibidas de tocar no assunto, tanto com Chanel quanto com terceiros. Cotejando fontes de fora da família e dados públicos, os biógrafos concordam em algumas informações básicas: o casal teve seis filhos na mais extrema pobreza. Viviam sem calefação nem esgoto; comida, quando havia, era de péssima qualidade. Ninguém frequentou escola. Jeanne morreu quando Gabrielle tinha 11 anos. Albert não estava por perto, e não se sabe se as crianças pequenas assistiram a agonia da mãe nem quanto tempo ficaram na casa com o corpo.
Certo é que Albert rapidamente se livrou dos filhos. Mandou os dois homens trabalhar numa fazenda, as meninas para viver num orfanato administrado por freiras e meteu o pé. Chanel falaria muito sobre seu pai – que ele a visitava com frequência, trazia presentes, a levava para passeios, e quando foi para a América escrevia cartas emocionadas prometendo um encontro futuro. Nada disso aconteceu, ele simplesmente sumiu. Não está claro se Chanel mentia, ou se esse pai idealizado era uma fantasia criada por ela mesma para se proteger da terrível realidade de ter sido uma criança abandonada.
A vida no orfanato não era fácil. O aquecimento apenas quebrava o gelo, trabalhava-se muito e as refeições, insossas, garantiam fome permanente. Nos seus sete anos ali, Gabrielle aprendeu a costurar, bordar, fazer botões e foi extremamente infeliz. Pensava o tempo todo em suicídio. Saídas podiam ser negociadas, e a família paterna eventualmente apareceu. Os avós levavam as três netas para passeios, e elas aproveitaram alguns feriados com avós e tias.
Quando fez 18 anos e precisou sair do orfanato, Gabrielle foi morar com suas tias em Moulins. Passou a frequentar a mesma escola religiosa que a tia Adrienne, da sua idade, como parte da cota reservada a órfãos. Suas roupas eram de segunda mão, os sapatos furados, os chapéus amassados. Sentia-se humilhada e pensava o tempo todo em suicídio. Nesse colégio duro seu talento na costura avançou rapidamente – órfã, ela teria que desenvolver alguma habilidade remunerada, e havia demanda por costureiras. Nos finais de semana ia para a casa das tias, que também costuravam, e aprendeu a fazer chapéus, colares, braceletes.
Terminada a escola, Gabrielle e Adrienne foram trabalhar num ateliê de costura local, especializado em enxovais e mortalhas. Nos finais de semana faziam um troco extra como ajudantes de alfaiataria, e ali conheceram oficiais de cavalaria e outros militares de alta patente – a região onde viviam era cercada de quartéis. Levadas por esses oficiais passaram a frequentar La Rotonda, uma galpão transformado em taberna e point de soldados. O lugar era barulhento, sujo, vira e mexe explodia uma briga e os arruaceiros eram postos para fora. Gabriele em algum momento havia passado a sonhar com uma carreira de cantora, e começou a se apresentar nessa espelunca, acompanhada pela tia ao piano. Seu repertório era composto de duas canções, a segunda delas se transformou no seu hit particular: “Qui qu’a vue Coco”, sobre uma garota desesperada em busca do seu doguinho, Coco. Era Gabrielle aparecer no bar e a turma começar a pedir a canção: “Coco! Coco! Coco!”. O nome pegou.
Coco Chanel nunca reconheceu haver crescido num orfanato (apesar de ter contribuído com a instituição por toda a vida), ter frequentado a escola de favor, ter trabalhado como costureira, muito menos haver cantado músicas chulas em bares suspeitos. O próximo evento da sua vida é um pouco menos opaco. Em visita a seu avô, que se recuperava numa clínica da estação termal de Vichy, conheceu o ex-militar Etienne Balsan, que a convidou para uma cavalgada no dia seguinte. Ao final do passeio Balsan a chamou para acompanhá-lo até sua ampla propriedade na região, onde criava e adestrava cavalos e liderava expedições de caçada. Dia seguinte os dois partiram e a família não se deu conta – o avô achava que ela havia voltado para casa, e a irmã que ela ainda estava com o avô.
A propriedade de Balsan era um refúgio de playboys reunidos ali para cavalgar, caçar, se envolver com mulheres e encher a cara. Balsan hospedava inclusive uma amante oficial, e não era qualquer uma – Emilienne D’Alençon, cantora e personalidade dos cabarés, considerada uma das beldades da sua época. Outra mulheres entravam e saíam da casa, acompanhadas ou não. Era festa toda noite, muita bebida, e não se sabe muito bem como a bagunça funcionava na prática. Aparentemente Coco se dava bem com Emilienne, e gozava de uma certa liberdade de ir e vir. Nos seis anos em que viveu com Balsan, Coco Chanel teve um curso completo de vida aristocrática – como comer, como se vestir, como conversar, e principalmente o complexo funcionamento das relações afetivas da classe dirigente. Mas a esbórnia cansou rapidamente; ela se sentia fútil, entediada, profundamente infeliz e pensava em suicídio frequentemente.
Balsan a levou numa viagem para Pau, cidade turística aos pés dos Pirineus, onde ela conheceu o britânico Arthur Capel, que todos desde sempre chamaram de “Boy”. Foi paixão à primeira vista: “Era um jovem elegante, muito bronzeado e atraente. Mais que elegante, ele era magnífico. Eu admirava sua tranquilidade segura e seus olhos verdes. Seus cavalos eram fortes e poderosos. Eu me apaixonei imediatamente. Eu nunca amei Balsan”, lembraria Coco Chanel num logo depoimento, prestado já na sua terceira idade, e reproduzido na excelente biografia “Coco Chanel, the legend and the life”, de Justine Picardie. Na curta estada em Pau os dois não trocaram uma palavra. Chanel soube que ele partiria no dia seguinte, descobriu o horário do trem e simplesmente o encontrou na estação. O destino: Paris.
O passado de Boy Capel é quase tão opaco quanto o de Chanel. Dizia vir de estirpe nobre, mas provavelmente não era verdade. Sua família tinha uma posição confortável graças a minas de carvão, e nesse momento ele vivia na França expandido os negócios no continente. Mais tarde, quando irrompeu a Primeira Guerra Mundial, a demanda por carvão explodiu e Capel transformou-se em milionário. Mas quando chegou em Paris com Coco Chanel a tiracolo, em 1909, Boy Capel tinha 28 anos e dinheiro apenas suficiente para viver como um playboy solteirão.
Capel hospedou Coco Chanel num hotel, pagava suas contas e a visitava com frequência, sem deixar de curtir a noite parisiense, inclusive com outras mulheres. Depois de abandonado, Balsan descobriu-se apaixonado por Coco e desembarcou em Paris também. Sofria de dor de corno, e ameaçava se matar. (As relações da elite da época, pelo visto, oscilavam rapidamente entre a sacanagem desenfreada e o drama novelesco.) Algum arranjo foi encontrado e Balsan, Capel e Coco passaram a ser vistos juntos. Eventualmente apareceu o tema de quem iria sustentá-la. Ela mesma teve a ideia de montar uma loja de chapéus, e os dois cavalheiros fizeram o investimento inicial. Balsan ainda ofereceu o apartamento que tinha na cidade como sede da fábrica. Uma das primeiras clientes foi Emilienne D’Alençon, outras cantoras e atrizes vieram atrás, rapidamente havia um negócio ali.
Para os dois bon vivants, sustentar uma jovem amante me Paris era trivial, muitos da sua turma faziam o mesmo: “Eles decidiram me dar um local onde eu pudesse fazer meus chapéus”, lembraria Coco Chanel, “como se estivessem me dando um brinquedo. Eles eram playboys, jogadores de polo, não tinham ideia da importância daquilo para mim”.
No auge dos seus 26 anos, Coco Chanel exibia uma graça exótica. Alta, magra, de cabelos curtos e roupas de montaria, causava impressão por onde passava. Sua visão sobre moda era radical – achava as roupas femininas exageradas, rebuscadas, coloridas demais. Seus chapéus seriam mais secos, diretos, de uma elegância discreta, concisa, até meio masculina. Capel preferia mantê-la quieta no hotel, mas de repente Coco Chanel se rebelou contra aquele cárcere privado e obrigou-o a levá-la jantar no elegante cassino de Deauville: “Todos os olhos se voltaram para nós. A minha entrada tímida, minha falta de jeito, contrastava com um vestido branco maravilhosamente simples. As beldades da época, com aquela intuição que as mulheres têm para perigos desconhecidos, ficaram alarmadas”. Em pouco tempo o apartamento de Balsan estava pequeno e Capel – cuja fortuna crescia exponencialmente – financiou outra sede, na rue de Cambon, inaugurada no dia 1 de janeiro de 1910. Na porta, uma pequena placa informava: “Chanel, modes”.
Chanel chamou sua irmã Antoinette e a tia Adrienne - ambas exímias costureiras e jovens beldades – e agora ela tinha uma equipe. Passou a fazer vestidos, que ela mesma estreava na noite parisiense ao lado de Capel. O trabalho era frenético, o ateliê recebia clientes o dia todo, e a noite as três costuravam incessantemente. Para a sociedade parisiense era um casal de sucesso: lindos, ricos e ditando moda, flanavam pela “cidade luz”. Mas Coco Chanel sofria. Sentia angústias profundas, frequentemente desmaiava. Segundo seu depoimento, estar com Capel a acalmava, mas ele nem sempre estava por perto, ia e vinha entre compromissos profissionais, bordéis, outras mulheres.
Um momento chave foi quando ela descobriu, em choque, que o negócio era deficitário e Capel vinha cobrindo os prejuízos. Ela pensava estar conquistando sua liberdade, mas na prática seguia sendo uma dondoca, sustentada por Capel. Se enfureceu, deu nele com uma bolsa e saiu correndo pela chuva na noite parisiense. Capel conseguiu alcançá-la alguns quarteirões depois, acalmou-a e a levou de volta para o apartamento (que ele pagava). Na manhã seguinte ela juntou a equipe, uma dúzia de mulheres nessas alturas, e decretou: “Eu não estou aqui pra me divertir, nem pra gastar dinheiro como água. Estou aqui pra fazer fortuna”. Aumentou a produção, cortou custos violentamente e um ano depois estava no azul. Apesar de não haver contrato escrito, o negócio seria uma sociedade entre ambos, e não é difícil imaginar que Capel, ele mesmo empresário bem-sucedido, tenha dado seus pitacos na parte administrativa. A sociedade está imortalizada no logotipo da Chanel, onde duas letras “C” estão sobrepostas e ao mesmo tempo olhando uma para cada lado: Chanel e Capel.
Os dois tiveram outro importante projeto conjunto. A irmã mais velha de Coco Chanel, Julia, havia se suicidado e deixado um filho de sete anos, André Palasse. Há quem cogite que Palasse seria na verdade filho de Coco Chanel, gerado na época de vida loca com Albert Balsan (Balsan foi próximo de Palasse a vida toda, inclusive ajudando na criação dos filhos deste – o que só pôs fogo na fofoca). Boy Capel deu todo o apoio quando Coco Chanel se responsabilizou pela criação de André Palasse, e o mandou para um internato na Inglaterra, muito parecido com aquele onde o próprio Capel havia estudado. Chanel afirmaria que Palasse chamava Capel de “pai” e, quando via uma barcaça levando carvão pelo rio Sena, exclamava: “Olha lá, é nossa!”. Ao que Coco retrucava: “Nossa não, do Boy”.
Coco e Boy continuaram juntos, nos negócios e nos lençóis, mesmo depois do casamento de Capel com uma aristocrata britânica, e o nascimento do seu primeiro filho. Sua esposa, Diana Capel, logo arrumou também um amante. Em 22 de dezembro de 1919 Arthur Capel estava viajando de Paris a Cannes em alta velocidade quando seu recém adquirido Rolls Royce Silver Ghost capotou. Demorou um dia para a notícia chegar a Paris, quando Coco Chanel foi acordada no meio da noite. Trocou-se e pediu que o próprio mensageiro a levasse até Capel. Não chegou a ver o corpo, totalmente carbonizado. No local do acidente finalmente chorou por horas, ao lado dos escombros do automóvel. Capel ajudou inclusive após morte, deixando uma herança considerável, que Coco Chanel investiu na empresa e na compra de uma vila nas imediações de Paris.
Coco Chanel pode ter “perdido tudo” com a morte de Boy Capel, como afirmou, mas não perdeu a Maison Chanel, que continuou crescendo vertiginosamente. Chanel tornou-se marca global quando uma cadeia de lojas elegantes passou a distribuir o perfume que ela havia criado, imediatamente identificável pelo design de seu recipiente, que Coco Chanel teria copiado das garrafas de whisky de bolso das quais Capel era inseparável. Sua ida para Hollywood nos anos 1930, onde ela fez vestidos para Marlene Dietrich e Greta Garbo, potencializou ainda mais a marca.
Depois da Segunda Guerra Mundial (quando Chanel se beneficiou da proximidade com os alemães invasores), ela conseguiu renegociar o contrato de distribuição do Chanel Numero 5 e virou uma das mulheres mais ricas do mundo. Coco Chanel, que havia passado toda a juventude paupérrima, deprimida e à beira do suicídio, jamais aproveitaria seu sucesso profissional. Angustiada, insone, logo passaria a consumir morfina, que ela mesma injetava, e nunca deixaria o vício. Morreu aos 87 anos, num domingo, em meios aos preparativos da coleção de primavera da Maison Chanel.



Bela história!
Baita história, Enor. Com todo aquele glamour, mesmo na miséria, de que só os franceses de uma certa belle epoque são capazes.