Donald Trump - Roy Cohn
Filme "O Aprendiz" mostra como Trump aprendeu tudo que sabe de negócios e política
O jovem Donald Trump anda meio desengonçado, pés virados para fora, desconfortável no terno agarrado. Ele avança pelas calçadas esburacadas da Manhattan do início dos anos 1970, e vemos lixo, pixações, mendigos, prostituição, as luzes dos teatros da Broadway disputando espaço com letreiros de cassinos, de casas de strip-tease, de bares mal iluminados. Assim começa “O Aprendiz”, filme escrito por Gabriel Sherman, jornalista que cobriu a primeira campanha de Trump à presidência americana (em 2016) e em 2018 fez a primeira versão do roteiro.
Trump entra sozinho num desses clubes sociais exclusivos, onde trata-se de ver e ser visto. Na próxima sequência já está na mesa, ao lado de uma moça. Os seus olhos correm ansiosos pelo salão procurando, avaliando. A moça tem apenas uma fração da sua atenção. Trump começa a falar, mais para si mesmo do que para ela: “Não existe nenhum lugar igual a esse. É único. Os Kennedys, os Vanderbilts, todos vinham aqui”. Ele começa a mencionar alguns dos figurões presentes. “Porque você está tão obcecado por essas pessoas?”, ela pergunta. Trump explica: ser um bilionário é um dom, ele tem esse dom, esse é o seu grupo. A moça vai ao banheiro e Trump nota um personagem encarando fixamente do outro lado do salão. Alguém se aproxima de Trump e o convida a juntar-se à mesa do figurão misterioso. Trump é recebido com uma pergunta: “Qual é o seu nome, bonitão?” O sobrenome “Trump” é reconhecido imediatamente – papai Trump é um empresário de destaque do setor imobiliário, o que nesse caso significava ser dono de prédios de moradia popular em subúrbios degradados da cidade.
O homem se apresenta, e também é imediatamente reconhecido. Roy Cohn havia sido promotor de justiça nos anos 1950 e 1960, e ficou famoso por haver auxiliado Joseph McCarthy nas infames investigações da presença de comunistas em Hollywood, período conhecido como Mccarthismo. Ele também fez parte da equipe que acusou o casal Julius e Ethel Rosemberg de serem espiões a serviço da União Soviética, resultando na pena capital para ambos. “Você é brutal!”, exclama o jovem Trump com admiração, usando uma gíria típica da época. Cohn passa a apresentar seus convivas à mesa – pode ser que aquele clube já tenha abrigado Kennedys, mas só o que encontramos na cena são mafiosos mal-encarados. “Não olha torto pra esse aí que você vai acabar no fundo do rio Hudson”, brinca Cohn, para diversão geral. Nessa época Cohn lidera um escritório de advocacia especializado em contencioso com o governo (qualquer governo), e tem um volume impressionante de vitórias.
Por acaso a família Trump está no meio de um imbróglio desses. A prefeitura e o departamento de direitos civis do governo federal movem um processo contra os Trump por discriminação racial que, se bem-sucedido, pode levar a família à falência. Trata-se da especialidade de Cohn. “Você está disponível?”, pergunta Trump. “Por que você quer saber, você é bicha?”, responde Cohn, para mais uma gargalhada da claque de brutamontes.
A partir daí “O Aprendiz” narra o encontro transformador de Donald Trump com aquele que seria o seu mentor, seu modelo, e lhe ensinaria as regras básicas do sucesso que, como vamos ver, guiam a atuação de Trump até hoje.
Usando fotos comprometedoras para ameaçar o juiz Cohn consegue a vitória no tribunal, e Trump assiste a tudo. Mesmo radiante com o triunfo, Trump questiona Cohn sobre seus métodos. E aí vamos conhecer a filosofia de Roy Cohn.
“Nos esportes, nos ensinam a marcar a bola, não o homem. Na vida real é o contrário – marque o homem, não a bola. A América é um país de pessoas, não de leis”.
“É uma vantagem não se preocupar com o que as outras pessoas pensam de você.”
“Não existe certo ou errado, moralidade... Não existe verdade com “V” maiúsculo, tudo é uma ficção criada pelo homem”.
E aí chegamos ao ponto central: “Nada importa além de vencer”
E, para vencer, é preciso seguir três passos:
1. “Ataque, ataque, ataque.” Cohn ilustra esse item ameaçando juízes, assediando advogadas, chantageando, subornando, intimidando.
2. “Não admita nada, negue tudo”. Quando confrontado com seus malfeitos, Cohn nega. Mas nem se dá ao trabalho de contestar com grandes interpretações teatrais. Às vezes nega na cara dura, às vezes até de forma meio cínica, entediada.
3. “Sempre cante vitória, nunca admita derrota”. Trump terá várias oportunidades de pôr em prática esse mandamento.
Tratando Trump como pupilo, Cohn o ensina a lidar com a imprensa, a negociar de uma posição intimidatória, a lidar com servidores públicos. O leva a conhecer o quartinho no porão da sua casa onde o advogado guarda material incriminatório contra tudo e todos, inclusive fitas cassete gravadas nas surubas que ele organiza na sua casa envolvendo empresários, mafiosos, membros dos três poderes, prostitutas e prostitutos. É graças a Cohn que Trump se aproxima da ala mais conservadora do Partido Republicano, e até usa um slogan da campanha de Ronald Reagan – “Make America Great Again” – como mote de um empreendimento. O seu plano mais mirabolante, que o projetaria nacionalmente, a Trump Tower, também sai graças a chantagem, ameaça e manipulação da justiça. A parceria Trump – Cohn está no auge.
Em entrevista à rede de TV americana CNN o roteirista Sherman explicou que quando finalmente foi possível viabilizar a produção do filme, no final de 2023, não passava pela cabeça de ninguém um segundo mandato de Trump, naquele momento respondendo a vários processos na justiça. “Eu queria mostrar como esse jovem foi criado, moldado por essa personalidade política lendária, icônica, mas também infame”. Perguntado sobre se Donald Trump teria chegado aonde chegou sem a influência de Cohn, Sherman não tem dúvidas: “Não acredito. Existem muitos milionários filhos de incorporadores de Nova York que se tornaram importantes na cena local, mas nenhum deles virou presidente dos Estados Unidos”. Quer um exemplo de aplicação prática dos ensinamentos de Cohn? “Quando escrevi o roteiro, em 2018, ainda não havia ocorrido (a invasão do Capitólio em) 6 de janeiro, e vejam o que ele fez: ele negou a derrota e cantou vitória. A aplicação do manual do Roy Cohn explica quem Trump é hoje em dia”.
Ao longo do filme acompanhamos a ascensão meteórica de Trump, e em seguida seu lento afastamento de Roy Cohn, quando sente que Cohn não está bem de saúde. Os sinais da Aids, que seria a razão da sua morte, já são aparentes. Só quando o médico garante que HIV não se transmite com abraço ou aperto de mão é que Trump ameaça reatar com o mentor. Mas o golpe final na relação vem quando Trump manda expulsar de um de seus hotéis o companheiro de longa data de Cohn, que também sofria de Aids, e ainda por cima manda a conta da hospedagem para Cohn. A cena parece ilustrar que nesse universo de amoralidade, onde não existe o certo e o errado e só a vitória importa, não há espaço para a compaixão com os fracos, indefesos e derrotados.
Vou assistir hoje!
Opaaa não sabia vou atrás!