Paul Allen - Bill Gates
Allen insisitu anos para que os dois montassem a empresa que os tornou bilionários
Na autobiografia recém-lançada “Código Fonte”, Bill Gates descreve sua primeira impressão de Paul Allen de maneira depreciativa: “Com quinze anos, Paul era dois anos mais velho que nós, e se achava muito mais descolado”. Mas a foto de infância mais conhecida dos dois parece contar outra história. Allen digita no terminal da escola Lakeside, onde ambos estudaram, com Gates olhando atentamente ao seu lado. Fica claro que Allen não apenas se “achava” descolado: paletó de veludo, camisa gola rolê, anel no dedo, corte de cabelo moderno com destaque para as costeletas (item obrigatório), Allen era um jovem adulto. Baixinho e franzino, a camisa pudicamente enfiada nas calças e abotoada até o pescoço, Gates não passava de uma criança. A amizade dos dois era improvável; aliás, sua proximidade se dava basicamente pelo interesse comum no terminal de computador da escola.

O grupinho que disputava o uso do computador era composto de duas duplas: Allen e outro veterano, Ric Weiland, tinham interesse por eletrônica e ficção científica há anos, liam, estudavam e falavam sobre computadores, só nunca tinham tido acesso a um. Gates, e seu BFF Kent Evans, dois anos mais novos, viram o terminal da escola como um desafio, um quebra-cabeças a ser desvendado, e decidiram dominar uma linguagem de computação que acabara de ser criada, chamada Basic: “De cara aprendi que o computador era uma máquina burra, que só dava um passo se recebesse uma instrução, independentemente das circunstâncias. Quando eu escrevia um código impreciso, o computador não conseguia inferir ou adivinhar o que eu queira dizer. Só depois de cometer muitos erros é que entendi isso. Quando finalmente acertei, a sensação de realização superou em muito o resultado”.
Os quatro acabaram amigos, e se envolveram em vários projetos. O primeiro deles foi numa empresa de tecnologia da sua Seattle natal, onde passaram a trabalhar em troca de poder usar o computador de graça – um tremendo benefício naquela época onde computadores eram caríssimos e do tamanho de uma Kombi. O desafio consistia em encontrar bugs nos programas da companhia. Gates e Allen queriam aprender, e uma maneira rápida era ver como os programadores “oficiais” faziam, mas ninguém dava bola para o grupo de fedelhos. Depois do expediente foram até os fundos da empresa, Allen segurou Gates pelas pernas enquanto este fuçava na caçamba de lixo, de onde tirou folhas descartadas de formulário contínuo com valiosas linhas de código que eles passaram a copiar.
Cerca de um ano depois pegaram seu primeiro job de verdade, automatizar a folha de pagamentos de uma fábrica de instrumentos musicais. Allen já estava com dezesseis anos, namorando, tocando guitarra e tendo suas primeiras experiências com drogas, e não se dedicou tanto quando Gates e seu colega Kent Evans. Gates se auto decretou chefe da empreitada, varou madrugadas por meses (fugindo de casa pela janela do quarto para ir programar) e o projeto foi um sucesso. Ninguém sabia mexer em computadores, quanto mais fazer um programa real, para uma empresa real, com uso real, e os quatro viraram mini celebridades. Quando voltaram a ter acesso apenas ao computador da escola os ânimos e egos estavam exaltados, a disputada pelo uso da máquina piorou a situação. Certa vez o professor que cuidava do laboratório teve que apartar uma briga entre Allen e Gates. Allen e Ric Weiland foram para a universidade e o pequeno grupinho se desfez.
Gates e Kent Evans pegaram outro serviço, organizar a grade horária das aulas do colégio, motivo de grande dor de cabeça. Fizeram um protótipo rapidamente, a escola se empolgou e investiu para ter um programa completo. Evans imaginou que outras escolas poderiam se interessar e vislumbrou uma empresa surgindo dali. Mas não deu tempo, Kent Evans morreu logo depois num acidente de montanhismo. Gates ficou arrasado. Era seu amigo mais próximo. Gates participava das viagens de veleiro que os Evans faziam pela costa do estado de Washington e do Canadá, e se sentia parte da família.
A morte de Kent Evans acabou por aproximá-lo de Allen novamente: “Liguei para Paul (...) e contei a ele que iria tentar acabar o programa da grade de horários até o final do mês, antes que terminasse o tempo grátis de uso do computador. Não comentei nada, mas era importante para mim concluir algo que havia começado com Kent”. Gates perguntou na lata: “Você toparia trabalhar comigo nisso?” No dia seguinte os dois estavam de volta à sala de computação da Lakeside.
O luto vivido em conjunto, exorcizado na tarefa da grade de horários, levou a uma intimidade não experimentada antes. “Conhecer a família de alguém naquela idade revela o tanto que se oculta na névoa social da escola e as máscaras que os garotos adotam em público. Pude ver em sua glória a nerdice de Paul, bem como seus pais que, como os meus, mesmo cientes de que seu filho não se encaixava bem na normalidade, ainda assim lhe davam todo o apoio”.
Allen nessa época namorava, já tinha tido suas experiências com drogas e conhecia muito rock and roll – seu ídolo era Jimi Hendrix, lendário guitarrista também nascido em Seattle. Cada um que encontrava, Allen perguntava sem pudor “Are You Experienced?” (você já experimentou?) - título do primeiro álbum de Hendrix. Tudo perfeitamente natural para um estudante universitário no início dos anos 1970, portanto. Quem “não se encaixava bem na normalidade” era o próprio Gates: agitado, se mexia sem parar nas cadeiras, fazia piadas sem graça, tinha hiperfoco para matemática, jogos e problemas complexos, mas nenhuma sensibilidade para quem estava à sua volta. Não bebia, não havia provado drogas e não sabia o que fazer quando encontrava uma garota.
Allen iria ajudá-lo, pelo menos em parte desses problemas. Levou para a sala de computação um uísque barato, e Gates teve seu primeiro porre. Ensinou como fumar um baseado. Certo dia apareceu com um tablete de LSD, que Gates garante ter recusado – foi provar mais tarde, na véspera de uma cirurgia dentária, e a experiência não foi das melhores.
Entregue o programa da grade de horários, Gates e Allen passaram a trabalhar em vários projetos juntos. Um programa de controle de tráfego. Outro para organizar a rede elétrica de toda uma região. Iam ganhando segurança, a parceria se fortalecendo. Allen já queria montar uma empresa, mas Gates resistia. Tinha acabado de ser aceito em Harvard – sonho da sua família – e ansiava pela vida universitária. Acima de tudo, não se empolgava por montar uma sociedade: “Minha opinião, na época, era de que os avanços da humanidade partiam de indivíduos. Eu imaginava o proverbial gênio solitário, o cientista isolado trabalhando incansavelmente em alguma disciplina, extrapolando seus limites até encontrar uma grande inovação”. Allen discordava: “Para ele o mundo avançava por meio da colaboração, em que equipes de pessoas inteligentes se reuniam visando um objetivo comum. Onde eu via Einstein como modelo, ele via o Projeto Manhattan” – trabalho de dezenas de cientistas que levou à criação da bomba atômica. “Ambas as perspectivas eram simplistas, embora com o tempo fosse a dele que viria a definir o nosso futuro”, conclui Gates.
Allen continuava querendo montar uma empresa, abandonou a universidade e aceitou um emprego em Boston, ao lado de Harvard, para poder ficar próximo de Gates. A oportunidade apareceu quando Allen leu numa revista de eletrônica sobre o Altair, primeiro computador pessoal. Entrou no dormitório de Gates aos gritos: “A coisa está acontecendo, e nós vamos ficar de fora!”. Gates reconhece que sem essa inciativa de Allen talvez a Microsoft não tivesse existido.
Gates ligou na cara dura para a empresa, se fazendo passar por Allen (mais velho, e com um emprego), e foi atendido pelo presidente. Rapidamente descobriria que se tratava de fake news – o Altair não existia, havia apenas uma única unidade, e era um protótipo, longe de estar pronto. Gates não deixou por menos e também deu uma exagerada, garantindo que tinha uma versão do programa Basic para rodar no Altair. Recebeu em troca uma promessa: se o programa funcionasse, comprariam o software.
O Altair ficou pronto, e mesmo com enormes limitações e milhões de bugs atraiu legiões de nerds atrás do sonho da computação pessoal. O Basic de Gates e Allen ia junto, por um pequeno valor. Nascendo já com receita, essa companhia precisava de um nome, e “Allen & Gates” parecia mais um escritório de advocacia. Como eles trabalhavam com software especificamente para microcomputadores, Allen sugeriu juntarem as duas ideias e surgiu “Micro-Soft”, com hífen. O ano era 1975, Gates tinha 20 anos, Allen 22.
Aos poucos os papéis foram ficando claros: Allen cuidava das inovações tecnológicas, os grandes saltos de produtividade e conceito, enquanto Gates escrevia a maioria do código. Gates também assumiu a parte administrativa e a área comercial, depois que Allen se mostrou uma nulidade em vendas. “Sinto que minha contribuição nessas áreas me dá direito a mais de 50% da Micro-Soft”, escreveu Gates. Sugeriu dividirem as participações em 60% - 40%: “Nada mais justo”, concluiu, sem afetar modéstia. Allen concordou. Quando a empresa já vendia para outras máquinas além do Altair e a receita crescia rapidamente, Gates largou Harvard para dedicar-se à Micro-Soft em tempo integral, e decretou que merecia uma participação acionária maior. Allen aceitou novamente.
O grande salto da Microsoft, o contrato para fornecimento do sistema operacional do computador pessoal da IBM, em 1980, foi uma iniciativa liderada e operacionalizada por Gates. Mas a Microsoft (mais uma vez) não tinha o produto, foi Allen quem encontrou e decidiu a compra do código fonte de uma pequena empresa de Seatle que seria a base do “disk operating system” (DOS) que a Microsoft entregou para a IBM.
Na sua autobiografia, Gates avalia como funcionava a química dos dois. “Paul e eu forjamos uma parceria que definiria o restante das nossas vidas. Um parceiro contribui para o relacionamento com algo que falta; ele inspira você a melhorar”. O estilo de trabalho dos dois era oposto, mas de uma maneira complementar. “Eu tinha orgulho da velocidade com que atacava um problema, da rapidez com que era capaz de chegar à resposta relevante, à melhor resposta”. Já Allen funcionava de outro jeito: “Muita coisa se passava em seu interior. Ele remoía e ponderava. Ouvia e processava. Sua inteligência não tinha pressa e podia esperara até surgir a resposta correta. E isso logo ocorreria”.
Allen se afastaria do dia a dia da companhia em 1982, após ter sido diagnosticado com linfoma da Hodgkin, um tipo de câncer do sistema linfático, mas manteve suas ações e permaneceu no conselho de gestão da companhia até 2.000. Ficou bilionário com a oferta pública de ações da Microsoft e investiu em dezenas de negócios, muitos deles voltados à comunidade de Seattle e região. Virou herói local ao comprar o time de futebol americano Seatle Seahawks, evitando que o time abandonasse a cidade, e ainda deu um tremendo upgrade no seu estádio. Empresas de investimentos, de produção de cinema e TV, de viagens espaciais e tecnologia fizeram parte do seu portfólio. Doou bilhões, principalmente para pesquisas relacionadas à saúde e ao meio ambiente e para iniciativas educacionais. Paul Allen nunca se casou nem teve filhos, a herança de dezenas de bilhões de dólares é administrada por sua irmã. Ele e Gates tiveram seus desentendimentos quando dirigiam a companhia em conjunto, mas depois retomaram a amizade até o final da vida de Allen. Quando da morte do amigo, em 2018, Gates escreveu: “Paul foi a primeira pessoa com quem tive uma sociedade, e estabeleceu um padrão que poucos puderam alcançar. Quando penso em Paul eu lembro de um homem apaixonado, querido pela família e pelos amigos. Também lembro de um tecnólogo e filantropo brilhante, que queria conquistar grandes coisas, e conseguiu. Paul merecia mais tempo de vida. Ele teria tirado o máximo proveito desse tempo. Eu vou sentir a sua falta tremendamente”.
A gente que cresceu odiando os bugs dos Windows muitas vezes não tem ideia do quão revolucionários esses caras foram, né?
Poxa, que bacana. Realmente, de uma amizade improvável nasceu algo gigante e revolucionário.